terça-feira, 19 de março de 2013

PAINEL DE POESIA MODERNA, PROPOSTA DESINIBIDA DO PRÓPRIO POETA (FERNANDO GRADE), A COMEMORAR, NO ESTORIL E EM OEIRAS, MEIO SÉCULO DE VIDA LITERÁRIA, E QUASE-QUASE OUTRO TANTO TEMPO DE PINTURA


COZIDO À PORTUGUESA

                                  Fernando Grade

Entre o cheiro acre da morcela e
o arroz que não há
-- falamos de mães (algumas) bordadas
de giesta.
O vinho era um deus circunciso
como se a branca parede recta
movida fosse por lanternas
("dedadas" -- diria o meu amor quase albanês).
Ao fundo, chuva e
laranjas de Lisboa.
Pego no pão claro, embrulho-o
no toucinho, lembro-me
que Sartre talvez comesse de outro modo
o cozido à portuguesa -- e avanço magnético
pela tarde acima, porque
de chouriços de carne
também se constroem bandeiras.
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(in livro de poemas
"SERENATA AO DIABO",
de Fernando Grade.
Edições Mic.
Estoril, 1978.
Esgotado).

(in antologia "25 ANOS DE POESIA
ANTOLOGIA 1962 - 1987",
de Fernando Grade.
-- Aparato gráfico e Revisão / Atelier Edições Mic.
-- Desenhos da série "TEORIA DAS MULTIDÕES",
de Fernando Grade.
-- Prefácio do Autor
"25 Anos de Vida Literária
ou a Poesia não se faz por Decreto".
-- Edições Mic / Colecção Salamandra / 12.
-- Estoril, Janeiro de 1988.
-- Esgotado).
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A RAPARIGA DOS MORTEIROS

PROSOPOEMA DE FERNANDO GRADE




à memória de Raissa Solovieva, morta em 1942,


na frente de Estalinegrado






TU eras a rapariga dos morteiros, a moça que trazia os cabelos soltos
pela nordestia. Tinhas um cereja cobalto a bailar nos olhos e, no ven-
tre, uma gaivota sem praia nem maresia. Podias ter ficado quieta ao
pé das lesmas, á lareira, ou vivendo do último beijo (quando nem o
primeiro deste), ou na dúvida ter alguns mortos heróicos na família.
Mas partiste para mastigar a neve, ou não fosses a rapariga russa
dos morteiros.
Ficaste para sempre de olhos abertos, tendo na língua o azul do tri-
go e das balas. O teu corpo misturou-se com as ervas sem nome,
com os bichos da estepe, e o sangue bom corria num arbusto de ne-
ve. Mas o rosto perfeito, sem um moscardo, como se fosses beijar
ou beber água ou comer mel, passou para os olhos de todos os ca-
maradas. Todos o levaram (quem lá chegou) até às portas de Ber-
lim, às casas esburacadas , até ao saibro da palavra bíblica --
"olho por olho, dente por dente". Ó Raissa, o obus nazi foi devolvi-
do ao ventre das berlinenses. Tenho, agora, o teu retrato à minha
cabeceira. O meu quarto cheira a Europa e estão lá os teus cabe-
los. A boca translúcida. Esses olhos da cor do Levante. E é por is-
so que sou um bom fetichista. E nunca deixo de beijar, todas as ma-
drugadas, ao deitar-me, os lábios molhados, sanguíneos, que se
desprendem do teu retrato antiquíssimo, ó saudosa rapariga rus-
sa dos morteiros.


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(in livro de poemas "A +2 = A RAIVA".
Edição Dilsar.
-- Lisboa, 1970).
(in antologia "25 ANOS DE POESIA

ANTOLOGIA 1962 - 1987",
de Fernando Grade).
Ibidem.

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COITO

SONETO DE FERNANDO GRADE


"Ninguém tem o direito de ser feliz sozinho."
                                 

                             (Denise Legrix)



ABRAÇAS-ME com as pernas em tenaz
por sobre os rins que sinto agora à pressa.
Queres-me assim fardado de rapaz
no teu corpo onde o cio sobe à cabeça.

Traçamos com saliva a nossa letra.
Então a língua sabe a romãs bravas,
minério com que o dorso se penetra
feito som de água pra criar palavras.

Nessa terra sangrada o pólen salta,
lesto, de mim pra ti: dentes nas mamas,
areias, sal, carumas, maré alta.

E, enquanto o nosso corpo fica em chamas,
nenhuma tristeza ou burro nos derruba:
sou o teu macho e tu és a minha loba. 

(in livro de sonetos
"SAUDADE SÁBIA",
de Fernando Grade.
Edições Mic.
Estoril, 1979).
(in antologia
"25 ANOS DE POESIA
ANTOLOGIA 1962 - 1987",
de Fernando Grade).
Ibidem.
(in antologia de sonetos
"OS MELHORES SONETOS DE FERNANDO GRADE".
Selecção de poemas por ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO.
4 ilustrações / desenho de ARTUR BUAL.
Edições Mic -- Colecção Salamandra/16.
Estoril, Novembro de 1992.
Esgotado).


Fernando Grade
(Poeta Português)

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