sábado, 1 de junho de 2013

DESDE A PORTELA DO HOMEM AOS RIOS ALMONDA E ALVIELA, TERMINANDO NA ALTURA E MANTA ROTA -- DAS COMEMORAÇÕES ON-LINE DOS 50 ANOS DE VIDA LITERÁRIA DO POETA, PINTOR E CRÍTICO DE ARTE FERNANDO GRADE, QUE PUBLICOU RECENTEMENTE O LIVRO DE POEMAS "NÃO MINTAS ÀS PEDRAS" (Edições Mic). PARA PARTILHAR COM QUEM LÊ -- E SINTA AO LER: EM SUMA, QUE FIQUE LAVADO E NU COMO OS GESTOS DE UMA CRIANÇA.

POEMAS DE
    FERNANDO GRADE
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            SONATA
   EM TORRES VEDRAS
                                -//-
Pelo som que deixavas na água,
seria verde e palha o nosso remorso.
Sizandro vão chamando àquele rio que
melhor se ouve do que cheira. E no outro lado da vila,
por cima das portas, uma criança-vidraça
procura pássaros-com-olhos-de-chuva.
                        -//-
Estou sempre em viagem,
pronto para excursões de trevo e cidra;
acompanho girafas e animais de pêlo raro
por súbitos caminhos de montanha,
na circunferência dos silvados,
em excitantes corpos viajados.
                        -//-
Abrem-se janelas sobre o mosto;
alguém berra com manhas de jibóia;
e devagar, na ternura que as coxas insinuam
cobertas de ganga, como moscas de pedra e sexo
-- as raparigas assaltam Torres Vedras e
cantam zumbindo.
                       -//-
As ancas, céleres, preparam as vindimas,
o colher das cerejas que,
depois, metálicas, cairão a pique no palato.
Aqui teremos todos os bulícios,
oh gengiva de feno.
                               -//-
Partirei, amanhã, num carro carregado de uvas.
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Torres Vedras
-- 9 de Abril de 1978
(in cadernos de poesia "VIOLA DELTA II".
Coordenação de Fernando Grade.
Julho de 1978, Edições Mic.
In "SAUDADES DE SER ÍNDIO".
Aparato gráfico / Atelier Edições Mic.
Revisão / Ester Pintasilgo.
Edições Mic.
Estoril / Setembro de 1981).
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       EM TORRES NOVAS:
                A FALÉSIA
                                             "Cunegundes desconhecia que havia perdido
                                a formosura, porque ninguém lho tinha dito".
                                                                         (in "Cândido", de Voltaire)
                                                 -//-
Ali no jardim, ao pôr-do-sol,
Sobre este rio (Almonda, de seu nome),
Observo com olhos marítimos a natureza.
Com os mesmos olhos azebrados
Vejo o Almonda como se
Fosse uma falésia, um bocado redondo
De mar; até descubro gaivotas voando
Sobre a sinistra maresia que
Abocanha as casas,
Oh musgo dos telhados.
                          -//-
Sinto-me como se estivesse na praia,
Num sítio que fosse talvez de heróis e
Sargaços (a Normandia); e o rio ergue-se inteiro
No ar, a todo o comprimento da alma;
É uma navalha bondosa.
                              -//-
Por entre as flores -- uma rapariga velha
Curte o pacato rosto de quem espera
O namorado que não virá mais.
Da terra sobe um ruído que
Se dilui rápido. Suor castanho? Os passos?
São oa metais que descem sobre
As águas misteriosas do rio.
E por isso a memória agita também as águas
-- Faz companhia.
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Torres Novas
-- 9 de Abril de 1978.
(Ibidem)
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         VELHA TERRESTRE               COM INCENSO
                                                                         para o Óscar Lopes
                                           -//-
Vai velha, mas
catita no seu renovado pé-de-dança
tão à flor dos olhos. Alma
lesma.
                                          -//-

Diz ao espelho -- voz off --
que o tempo não entardece
nas ânforas que (ela) teceu.

                                         -//-

Vem de uma viagem longa de cortesãs
e segredos, vai de chapéu
gorrazul onde fica vistosa a baba
do rato.

                                      -//-

Tem por si (velha catita)
as ruas tão de cravos por cruzar
-- o postal lembradiço: Nova Iorca
Madride              um cheiro de cebola
preso ao avental.

                                    -//-

Vai de nuvem nova, dente
postiço, nada sabe de Arquimedes
ou Pasteur. Sua filosofia?
Ser uma cabra de
Cristo.
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Estoril -- 12 de Abril de 1977
(in livro de poemas
"SERENATA AO DIABO".
Capa e colagem trabalhada / Fernando Grade.
Desenho ilustrativo / António Ole.
Foto / A. F. de Sousa.
Revisão / Edições Mic.
Edições Mic / Estoril / Abril de 1978)
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         TORREENSE
                                                      para o cão Rublo
                                  -//-
Gosto deste lume gosto destas algas
com a sua lareira de vermes
porque o cheiro do cão sobe aos livros
as portas fecham-se e abrem-se sobre o dorso canino.
O cão é o craque da casa.
Casa de cão vestida.
Casa com aroma de esponjas
cão lindo de trevas.
Animal com manhas de açúcar:
tudo vai e vem à boca do cão.
Oh cão perdoa-me.
Já não tenho alma suficiente
para incendiar a tua vida,
de bicho à chuva das palavras,
sempre doido por rua.
                            -//-
Cão, oh cão chama-me bruto sem vinho
e trata-me por amigo.
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Torres Vedras -- 29 de Junho de 1985
(in "O LIVRO DO CÃO", Mic. Estoril
-- Fevereiro de 1991).
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ODISSEIA AO SALTAR DA CAMA


                                    -//-


Acordei no Pragal em casa de Luís e de Maria,
no leito da pequena Tânia que foi passar o domingo
                                                                [com os avós.
Acordei cercado de desenhos muitos e lindos que
parecem bocas arraçadas de morango,
bonecos rápidos saídos da terra,
aviões feitos de alma.
Em baixo ouve-se um cão comunista opondo-se
                                                             [ao cimento,
ao silêncio.
Ontem disse os meus poemas bebendo água:
eram quatrocentas pessoas
na Sociedade Filarmónica Piedense
a ouvir o barulho das minhas terraplanagens,
e vi gaivotas voadas nos olhos de muita gente.
Acordei agora mesmo no Pragal a pensar
                                  [nos vates do Chiado
que (nas cinco livrarias da rua)
vendem onze livros aos amigos, e
são felizes por terem tanto público!
Na varanda cintila um branco moinho de
papel entre pedras minúsculas.
Pudesse a minha vida ser a cópia desse brinquedo:
acordar sempre no meio de desenhos que cantam e
sobem às paredes; ser um eterno lenhador
                                                   [de emoções;
sentir-me bem à janela.
                             -//-
Acordei de vez no Pragal, e
sei agora que a poesia é a raiva de fazê-la.

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Pragal -- 23 de Julho de 1978
(in livro de poemas
"COMPRA-ME UM DOIDO".
Capa / Fernando Grade
Foto / Manuela Ferreira
Revisão / Pedro Gonçalo Grade.
Edições Mic
Estoril, Novembro de 1988)
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        O TANGO DA CHUVA

                                          "Uma hora de amor é um curso de teatro
                                 completo"
                                                            (Camilo Castelo Branco)


M. R. Bulhoz era ciumento
e em outros muitos outros negócios de ver
                                                            [e sentir
procurava rodas e roldanas febris
por dentro do vento
à flor dos ossos
e por vezes, olheirento, pensava:
a água lava todas as cicatrizes.
M. R. Bulhoz mostrava-se um animal de viagens
rancoroso como todos os amorosos diabólicos.
E refugiava-se na sala dos morcegos
onde a música sabe a bolor preto
pêssegos ratados
e terra húmida de ocra
mas sonhava que os nervos dão flor
como as cabeleiras das raparigas
                                  [da Andaluzia.
Bicho perverso, M. R. Bulhoz lasca
                                [os sentimentos
mais puros e tem medo
-- tem medo porque sabe que
o mar tem sanfonas e crisântemos
e as sereias, agora, besuntam os olhos
com excrementos de gaivota.

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Estoril -- Setembro de 1981
(Ibidem)
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          CAMAS EM BRUXO

                        (Arte Maior)

                         -//-

Quatro pés cresceram pela cama fora;
vão de beijo à ré, sete lenços no ar.
A dona da cama foi de barco embora,
vai tonta de abraços, não lhe vou chegar.
                                           -//-
Perdi os retratos, a bonita manha,
tenho as meias rotas, sou de muitos fados.
Parto os gestos todos, minha pobre lenha
de morrer aos poucos, em tantos bocados!
                                          -//-
Nasci na cisterna, numa noite queda,
vinham velhas damas, sinas de lacrau,
ver meu corpo ungido por manhas de seda.
                                          -//-
E cresci nas trevas (fui o trevo mau!),
surgiam mostrengos do fundo das casas,
e a rosa que foi ao chão já tinha asas.

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Estoril (1989)
-- 31 de Julho / 1 de Agosto

                                     -//-
(in livro de sonetos
"A MINHA PÁTRIA É O SÁBADO".
Capa e respectivo desenho
da série "TEORIA DAS MULTIDÕES"
/ Fernando Grade.
Aparato gráfico e revisão
/ Atelier Edições Mic.
Edição nº. 67.
Edições Mic -- Colecção Salamandra / 15.
Estoril, Novembro de 1989.

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              OS GREGOS                                  -//-
                                                      para a Conchita Bonafuente
-
"Os Gregos economizavam o seu dinheiro com um cuidado
com um cuidado quase maníaco e um dia Monique descobriu
porquê. Eles economizavam o seu dinheiro para um dia poderem
voltar à pátria e comprar um olival".
                                                                   (Grace Metalious)
                                 -//-
Os Gregos
-- que tiveram na caça às cobras
um desporto muito intelectual --
deram-nos tudo:
o sal
o olho filosófico
a gramática
o cu nu
e até uma noção pouco metafísica de porta-moedas.
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Tetuan -- Verão de 1973
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(in livro de poemas
"O VINHO DOS MORTOS"
-- 5ª. Edição, Universitária Editora,
1977-1979-1985-1986-1999).
5º. Edição: capa e desenhos das séries
"TEORIA DAS MULTIDÕES"
e "SILHUETAS LATINAS" /
Fernando Grade.
Revisão / Pedro Gonçalo Grade /
Ester Pintasilgo.
Lisboa, 1999.

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