quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Amilca Ismael, escritora

Paulina Chiziane, no prefácio de Casa de Recordações, apresenta-nos uma leitura muito feliz da obra; revela ao leitor os aspectos que nortearam a autora da narrativa, Amilca Ismael, que constrói uma narradora que, na sua narração, capta a atenção do leitor da primeira à última página.
Quando o tradutor e o editor da obra me distinguiram com o convite para colaborar na tradução de La Casa dei Ricordi, como consultora e revisora da tradução de Matteo Angius, aceitei com prazer a tarefa (nem sempre fácil) de colaborar, confirmando a competência do tradutor para quem tanto a língua portuguesa como a realidade moçambicana não têm segredos.
Amilca Ismael, natural de Maputo, casada com um italiano, cedo acompanhou seu marido para Itália onde nasceram as filhas do casal italo-moçambicano.
Amilca, como uma pequena árvore transplantada, devia criar raízes onde estava a fundar a sua nova família. A sua primeira necessidade foi a de dominar a língua de comunicação no país onde teria de exercer as suas funções de esposa, mãe e cidadã útil à sociedade. A simbiose entre a cultura moçambicana de origem e a cultura italiana, onde se inseriu, foi ao ponto de conseguir interiorizar a língua italiana que acaba dominando melhor do que a portuguesa (a nível da escrita), o que não custa compreender quando se pensa que foi em italiano que recomeçou a estudar, já adulta, e se preparou para a profissão que desempenha há  mais de 20 anos. Amilca estuda, diploma-se como assistente social-sanitária e exerce as suas funções no norte de Itália, numa Casa de Repouso para Idosos.
Baseada na experiência profissional vivida, Amilca Ismael decide ficcionar a sua própria vida de emigrante moçambicana integrada e participante na vida social num país industrializado do primeiro mundo.
Assim nasce Casa de Recordações, uma história contada, em primeira pessoa, por uma jovem mulher, moçambicana negra, a quem é atribuído, carinhosamente, o nome de Chocolatinho.
Dentro da história da quotidianidade da vida de Chocolatinho, muitas outras histórias se virão a cruzar, dado que a narradora estabelece uma relação afectiva e atenta com os idosos confiados aos seus cuidados.
Cada personagem vai representar um determinado tipo de relação inter-pessoal que constituirá o tecido social que dá vida e sentimentos contraditórios mas humanos, a um lar de idosos na Europa.
A memória da origem é uma constante na mente e na consciência de Chocolatinho e ela trás aos olhos do leitor, impondo-lhe, sempre em paralelo, o passado, o antepassado e o presente:
“Na véspera de Natal tinha que cumprir com o turno da manhã: levantei-me como sempre às quatro e cinquenta, um belo duche, matabicho e, ala! para o serviço! Lá for a estava muito frio […]
O termómetro que se encontrava na berma da estrada marcava menos cinco graus e o meu pensamento voou para África, onde a temperatura era sem dúvida superior a 30 graus. Uma lágrima de saudade desceu no meu rosto e o coração quebrou-se enquanto pensava na minha mãe e nos meus irmãos […]

Levantei o volume do meu rádio cantando em voz alta a canção da Pausini […]. Levantei um pouco o termostato, elevando a temperatura do interior do carro até 20 graus, esperando que isso chegasse para aquecer meu coração tristonho.” (p. 107).
É Chocolatinho quem nos relata as histórias dos seus idosos que vai conhecendo e conquistando, a despeito de iniciais manifestações de racismo e arrogância por parte de alguns:
“- Negrinha, tu me vais dar banho!
Não me zanguei pela palavra “negrinha”, nunca tinha criado ilusões. Estava certa de que ela não tinha mudado a sua opinião acerca das pessoas de cor” (p. 79).
Uma destas personagens quase se torna a personagem central do livro visto ser ela quem conduz todo o interesse do leitor, preso ao suspense criado em torno de si pelo romance de que é protagonista e em que Chocolatinho se envolve:
“Eu gostava muito de Rita, ela me intrigava.
- Mas porquê, nunca ninguém vem visitá-la?, questionava-me […] (p. 55).
Observando os casos de solidão e de abandono familiar sofridos pelos que estão sob seu cuidado, vítimas duma sociedade desumanizada e materialista, a narradora evoca a situação dos anciãos do seu país e nasce nela a esperança de que, num futuro, os seus velhos moçambicanos, sem perderem o afecto e a companhia dos seus familiares, como tradicionalmente acontece, alcancem o direito ao conforto que cobre os idosos italianos de quem ela cuida.
Casa de Recordações não é apenas uma história que existe no mundo da ficção. É uma história autobiográfica, segundo sabemos. Mas é muito mais do que isso: é um universo onde vivem seres humanos condenados ao esquecimento e à solidão.
A leitura deste livro impõe-se como uma chamada de atenção para o que se faz e o que se deveria fazer quanto à prevenção do futuro dos idosos em todo o mundo, mas em especial em Moçambique, constantemente evocado pela narradora como a origem que não deseja esquecer.
Porém, em Casa de Recordações o aspecto que mais nos toca é universal e ultrapassa o aspecto nacionalista. Pouco tem a ver com o facto de o livro ser moçambicano ou italiano; o tema fulcral da estória é o isolamento, a indiferença e a solidariedade (ou a falta dela) entre os elementos de uma sociedade moderna, capitalista, que vive do consumismo e em que as relações humanas se pautam pelo interesse lucrativo ou de prestígio social; em que a família não falha porque uma relação amorosa se rompeu, mas porque falha o respeito pela dignidade humana devido a cada cidadão, independentemente dos sentimentos individuais que os ligam entre si. É este o aspecto mais importante que ressalta da leitura de A Casa de Recordações.
Trata-se de um livro que já esgotou 2ª edição em Itália e que, sem dúvida, suscitou nos leitores desse país a curiosidade sobre a realidade moçambicana que a narradora sugere ao tornar evidente as manchas cinzentas de uma realidade social italiana, aparentemente feliz mas, tantas vezes, escondendo dramáticas situações de abandono afectivo e de isolamento dos familiares que só garantem materialmente o sustento dos seus progenitores.
Trata-se de um testemunho e de uma denúncia sobre as relações humanas na nossa actual civilização.
Porém, a leitura desta história vivida por uma moçambicana na diáspora, abre uma janela sobre um aspecto da realidade que está ainda por incluir na literatura moçambicana e é exactamente a existência de escritores moçambicanos que escrevem em português e noutras línguas.
Em Portugal, foi criada a Associação dos Escritores Moçambicanos na Diáspora. Delmar Gonçalves é o seu grande suporte e fundador, sempre assessorado pela Vera e por vários que não cito para não esquecer algum...
Quem consultar o facebook irá encontrar o que é a AEMD. Nos Encontros anualmente realizados na Casa de Goa (gentilmente cedida até 2011, ano em que se estabeleceu na actual sede em Carcavelos - Portugal), tem sido constante a presença do Senhor Embaixador de Moçambique em função no respectivo ano.
Com este livro temos o contributo literário de uma moçambicana que transporta consigo a riqueza de duas culturas numa simbiose que lhe dá direito ao título de cidadã do mundo.
Considerando que a arte é sempre património mundial, deixo para futura reflexão, o factor ou os factores que determinam e separam a nacionalidade literária do cidadão/escritor/artista.
Fernanda Angius
In Savana Semanário Independente de Moçambique

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