quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Milando de um jovem imigrante

Milando de um jovem imigrante
ASCÊNCIO DE FREITAS
(história verídica)

"Solitude... Será assim que se diz solidão em inglês?" – perguntava a si mesmo o jovem emigrante português olhando os descoloridos e coçados tecidos de damasco dos sofás do velho hotel onde estava hospedado, as paredes encardidas talvez de fumo de milhares de cigarros e de poeiras mal espanadas, como se a memória de um desconhecido passado fosse a única coisa que teimasse em existir naquele solitário presente. 

De qualquer modo, era vão todo o seu esforço para fingir que dentro de si apenas morava a falta de memória e a falta de um passado, porque doendo, teimosas e impertinentes, estavam as dores, imersas na solidão. Como se essa solidão não fosse uma simples paragem no caminho, mas sim a frágil beira de um abismo. Gostaria de pensar num poema que lhe dissesse que a felicidade não é mais do que simplesmente ser feliz, ou rememorar a receita de Einstein, em que ele dizia que nos momentos infelizes só a imaginação nos pode salvar. Mas, onde encontrar dentro de si a esperança, se apenas sentia o vazio de uma vida contrariada, na qual moravam apenas a recordação daqueles que amara solidariamente com toda a força do coração agora magoado? Ah, a solitude! - se é que era assim que diziam aqueles entre os quais vivia em voluntário desterro. Em Bulawayo, próximo dos prodigiosos e arredondados blocos de granito de Matopos, erosionados por chuvas e ventos de milhões de anos, entre os quais Cecil Rhodes quis ser sepultado e de onde pareciam nascer os gelados ventos nocturnos que afinal vinham de mais longe, do norte do desolado deserto do Kalahari.

Era um dia parado e triste, e ele sentia-se amarrado a um futuro incerto, imprevisível, olhando as paredes envelhecidas e sem brilho, fumando ao ritmo de uns dez cigarros por hora. E, em desespero, sabendo que estava a deixar-se dominar por uma solidão esmagadora. Solidão carregada da mesma persistência que leva um velho reformado sentado no banco de um jardim público a pensar que só a morte poderá alterar já a sua inútil existência. "Mas a felicidade existe!"– pensava, teimosamente, com o empedernido romantismo que sempre o acompanhara ao longo da sua ainda não longa vida, admitindo, na sua tendência para o sonho, que ainda voltaria a ver o pôr-do-sol na orla de qualquer praia, o luar sobre um jardim, certas flores encerrando as corolas ao sentirem a penumbra do crepúsculo e abrindo-as de novo ao dealbar do dia, uma criança descuidadamente brincando sozinha ou apenas uma ansiosa namoradinha de mão dada com o par da sua eleição.

E de repente os seus olhares encontraram-se... Como se tivessem dobrado uma esquina e ficado parados um diante do outro. Talvez com uma súbita palpitação nos seus corações. Um baque - ela deixando o olhar sobre o seu rosto e ele tendo de súbito consciência de que havia mais alguém naquele lounge de hotel devastado pela decadência de muitos anos. Lindíssima (pareceu-lhe), e uma das partes de um casal sentado duas mesas à sua frente. Ah, e no seu olhar a mesma solitude – provavelmente apenas temporária, porque ele sabia que nas mulheres a solidão parece desvanecer-se na poalha de qualquer pequeno prazer. Ou saberia ela que o tempo do seu futuro estava já amarrado à condenação de um impossível? - essa teia onde se emaranham os sonhos? O provável marido estava absorto na leitura de um jornal, sem lhe conceder a graça de um pequeníssimo gesto de atenção. Ah, esse, sim, seguramente com a firme certeza de que o futuro é um assunto em que não interessa pensar. Como se o fascínio da mulher fosse já, dentro de si, algo perdido num indefinido horizonte. Com cada um dos seus gestos condicionado por um quotidiano elaborado a partir do trabalho obrigatório, da ainda mais obrigatória dose de cerveja a ingerir quando chegasse a hora em que seria permitido fazê-lo e, talvez, uma entediante cópula semanal. Sem a luz de outras animadoras circunstâncias, como se a morte antecipada de todos os seus sonhos tivesse levado já com ela as palavras que ambos um dia tinham tido para dizer um ao outro. Banalidades, possivelmente - nas quais não havia agora um mínimo resquício de paixão. Essa mostra permanente de que a inteligência do homem o condena à estreita miséria de não saber nunca como lidar com a vida.
 
Ao reconhecer no angustiado olhar da mulher o ermo da mesma solidão que sentia dentro de si, sem saber porquê o homem recordou os versos de uma canção brasileira em voga, lembrando um amor perdido e que desejava submerso na lava recente de um desgosto ainda em carne viva: "Ai, amor, se eu pudesse te abraçar agora / Ai, amor, se eu pudesse parar o tempo agora / P'ra não ver você partir!"...  - surpreendido com a súbita vertigem que era o simples voo do olhar passageiro dela sobre o absoluto zero da sua existência naquela sala. Esse sinal rapidamente perecível, breve e efémero, mas que nos reconduz aos lugares onde a luz da vida, transitória como é, nos acorda para a impenitência do que somos. Porque foi esse primeiro olhar da mulher que lhe revelou a frágil vítima solitária da indiferença do seu companheiro, como que acompanhado do brilho triste de uma flor vermelha de repente pousada no seu busto de mulher mal amada.

Ela não deu a perceber nem a mínima parcela de surpresa perante o que a partir do encontro dos seus olhares passou a ser a insistência do olhar dele. Porque nenhuma mulher desesperada, bonita ou feia, deixa de sentir o peso da âncora que é o olhar de um desconhecido carregado de fascinação, mas também de um abandono igual ao seu. A sua sensibilidade feminina, rastejando no chão do visível desinteresse do marido, como a metáfora da serpente que no Paraíso dizem que tentou Adão, depressa encontrou as raízes do compromisso do seu corpo jovem com a natureza. Outros homens teriam já feito a viagem a Cítera tentando conquistar os agrados daquela Afrodite desesperada?... Mas a ele o que é que isso importava?

Consolo incomparável é para um homem mergulhado até ao pescoço nas poeiras no seu caminho de nómada, poder confirmar de repente os recursos teatrais que se escondem no seu olhar, todos os seus números de transformismo, as fases mais ou menos cromáticas e impressivas do rubor que despertam, que vão da fúria ao pudor, do ingénuo romantismo à voluptuosidade daquela a quem é dirigido. Alvores, zénites e crepúsculos, que aquele jovem emigrante reconhecia no seu próprio olhar, tanto quanto conhecia já as manchas mais nítidas do lounge do hotel. E foi o secreto e misterioso poder desse conhecimento de uso pessoal e intransmissível - aliás, sempre empírico e continuamente experimental - , que ele, com o fervor de um crente, utilizou olhando a mulher, descarado e insistente... Ah, e como é estupidamente sugestivo e agradável para o ego de qualquer homem sentir que o vago poder do seu olhar se transforma de repente em algo objectivo e poderoso, a cuja sombra ninguém dá nem recebe ordens, ninguém exige nada e, generosamente, tudo se dá e tudo se recebe! Onde cada um, nos passos que dá para o mais fundo do pequeno inferno que é, não encontra o favor de nenhum Orfeu que, usando o mágico encanto da sua lira, o possa salvar do caminho pecaminoso.

Aquele angustiado e confuso baile de olhares durou enquanto durava o tempo que o marido fastidioso e indelicado levava a ler o jornal.
Tempo suficiente para nascer nos olhos de ambos esse invisível sorriso que uma benéfica cumplicidade irremediavelmente esconde de todos os outros. E subitamente a mulher levantou-se e caminhou na direcção das escadas que levavam ao primeiro andar do velho hotel, onde se encontravam os sanitários das senhoras e também os quartos dos hóspedes do mesmo piso - onde, do lado esquerdo do corredor, o primeiro quarto era o daquele hóspede subitamente abalado na sua solidão. O qual, sem dar atenção à possível dramaticidade que pode o destino esconder em cada uma das suas surpresas, se levantou também e subiu as escadas atrás da mulher. Atitude que porventura naquele momento não teria mais do que a banalidade de uma qualquer coerente manifestação no zoo da sua subconsciência.

Diz-se que a ameaça da morte torna fácil qualquer renúncia, tanto quanto a sobrevivência animal acirra o instinto da continuação da vida. A física e a do espírito. Mas nenhum náufrago poderá sentir-se mais nu e desprotegido do que uma mulher bonita quando vê os seus encantos físicos afundarem-se na indiferença de quem, em todos os minutos da vida, a deveria admirar e amar.

É terrível o balanço dos desastres da mundana e preconceituosa moralidade causados pela frustração amorosa das mulheres. Mas quem vai dar-se ao trabalho de investigar - ainda que só em numeração fútil e longínqua - os monstros jacentes e invisíveis que existem nos corações das mulheres desprezadas? Ou encontrar a chave que desvende as instruções de como proceder à luz de uma ilusória moralidade? Ah, mas mesmo à luz dessa possível moralidade, quem poderia impedir o jovem emigrante solitário de desejar aquela mulher desconhecida e de pensar: "Ai, amor, se eu pudesse te abraçar agora..."  Abrindo a porta do seu quarto, quando ela regressou dos sanitários estendeu-lhe a mão esquerda, que ela segurou ao chegar junto da porta aberta, deixando-se conduzir para dentro da habitação. Ah, a um homem solitário e triste que lhe importam as palavras inúteis? Ele sentiu a suavidade dos seus lábios, a sua respiração ansiosa e morna e a desesperada pressa com que despiu - sem uma única palavra de qualquer deles - as calcinhas da pura cor dos lírios brancos, que poucos minutos depois tornou a vestir antes de abandonar o quarto. "Oh! Solitude! Solitude!...


Ascêncio de Freitas
(Escritor Moçambicano)

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