segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Minha identidade de brasileiro





Minha identidade de brasileiro

Reconheço-me como brasileiro, cidadão consciente de meus direitos e deveres. Sou o brasileiro propalado pela grande mídia, em alguns aspectos, e um cidadão do mundo, em alguns outros.
Como a maioria dos compatriotas, nasci despido do que há de mais elementar na vida de um ser humano: uma casa. Minha família não tinha habitação própria, um bem que só foi conquistado 25 anos após o meu nascimento, 25 anos de luta.
Filho de pais analfabetos, nordestinos, retirantes de suas cidades de origem. O mais velho de oito irmãos. Morador, por óbvio, da periferia de uma cidade do interior Jequié (Bahia), em cujo bairro “da Banca” não havia qualquer tipo de infraestrutura, esgotamento sanitário, luz elétrica, água encanada, serviços de telefonia ou transporte coletivo. “O fim do mundo”, onde todo brasileiro costuma nascer. Por estas e outras questões é que eu me sinto um autêntico brasileiro.
Estudante de escola pública, enfrentei a palmatória e os puxões de orelha para aprender a lição. Repeti ano várias vezes, principalmente até a 5ª série. Durante o tempo de escola, sempre precisei trabalhar. Peguei no batente aos seis anos de idade e não parei mais. O difícil era conciliar o sono e o cansaço na hora de assistir às aulas noturnas. Depois de uma jornada que se iniciava às 8 da manhã e terminava às 22 horas, voltava a pé para casa, distante da escola quase uma hora. Brasileiro aguenta. Sempre!
A volta para casa era sempre um momento de desolação, pois sabia que, ao chegar, não encontraria o que comer. Jesus tinha repartido um pão entre milhares de seguidores, mas em minha casa a gente não conseguia repetir tal façanha. Não sabíamos fazer milagres. E a casa, de vez em quando, mudava de endereço. Como não pagávamos o aluguel em dia, ou ficávamos devendo, o dono nos botava pra fora.  Uma rotina à qual nos acostumamos. Afinal, tantos outros vizinhos passavam pela mesma situação, que essas privações se tornaram familiares e comuns. Era o destino. Ninguém podia fazer nada para mudar. Nem tentar mudar. Já era tradição no país o povo viver assim, ao Deus dará. O melhor a fazer era se resignar enquanto “O Reino dos Céus” se preparava para receber os pobres...
Trabalho? Trabalho de brasileiro: carregador de compras na feira, limpador de quintais, vendedor de doces nas esquinas, quebrador de pedras... Não tinha dinheiro para brinquedos nem para livros. Brasileiro não lê, trabalha. Quando eu queria livros, brinquedos, catava-os nos lixos. As sobras da renda mal distribuída estavam ali ao meu alcance. Nas andanças pelas ruas e becos, aprendi sobre sexo, o que era certo e o que era errado. Mas em casa as lições eram outras. Minha mãe, apesar de analfabeta, tinha uma postura de brasileira honrada: honesta, não queria “sujar” o nome, tinha que dar uma educação exemplar aos filhos, para não que não viessem a sofrer como ela. Haveriam de ser diferentes!
Minha raça sempre foi a “raça ruim”, a raça que pertence à pobreza, àquelas famílias que se situam abaixo da linha da pobreza, a raça dos miseráveis, dos sem futuro. Eu não tinha noção do que era ser negro ou ser branco. Eu sabia quem era preto e quem era branco, mas não tinha a verdadeira noção da raça. Hoje descobri que sou negro. Mas descobri também que pertenço à raça humana, o que dá tudo no mesmo, não importa a cor da pele ou se os cabelos são lisos ou encarapinhados. Descobri que a ‘tradução’ de raça mudou, mas que as condições de vida das pessoas, brancas ou negras, continuam as mesmas, ou melhor, pioraram. Descobri que minha mãe tinha uma avó índia, que havia muitos negros em nosso passado. Mas nada disso me importa, não importa mesmo. Sou negro na raça!
Após mais de vinte anos de luta incessante, de estudar à noite e trabalhar de dia, finalmente, saí das estatísticas da miséria. Não preciso mais ser negro ou ser branco. Ascendi socialmente, com esforço e com estudo. Apaguei da mente a promessa de recompensa após a morte. Minha recompensa eu quero aqui, agora. Quero ser igual a todos os outros brasileiros, como a lei me garante. Pena que tenha descoberto tudo isso tarde demais.

Religião e cidadania
Nasci católico e continuo sendo católico. Afinal, todo brasileiro é católico apostólico romano. Mesmo os que nunca vão à igreja e nem sabem o que é ritual. Frequentei missas dominicais, batizados, procissões etc. e tal. Mas a fome falou mais alto quando descobri que no Centro Espírita eram distribuídas cestas básicas. Aí não saí mais de lá, desde os seis anos de idade. Hoje, naturalmente, não recebo mais doações de cestas básicas, nem de roupas, nem de remédios. Ao contrário, quando posso, doo alguma coisa. “No meio do caminho tinha uma pedra”, e para driblá-la, me converti ao protestantismo. Anos depois, voltei ao espiritismo. Recentemente, conheci o candomblé e passei a frequentá-lo, sem, no entanto, deixar o espiritismo, nem o catolicismo. Também não recuso, ainda, convites para assistir a cultos em igrejas protestantes. Sou eclético, sou brasileiro.

A noção de cidadania nasceu bem tarde em minha consciência e em minha família. Brasileiro não precisa saber dessas coisas. Tudo é resolvido pelo governo. E o que o governo não puder fazer, Deus dá um jeito! Minha mãe fazia promessa para tudo quanto era santo. E todo ano rezava uma ladainha para São Roque, o que mais lhe ajudava nas horas difíceis. Deus ficava em segundo plano. São Roque sempre estava a postos. Deus, apesar de ser brasileiro, deveria estar sempre ocupado com outros assuntos mais urgentes. Cuidando de um país tão grande, como iria notar uma família de esfomeados no interior do nordeste?
As lutas estudantis, nos idos anos 80, serviram para despertar uma noção de “igualdade” perante a lei. E despertou também a revolta e a desilusão com os políticos, que sempre se esquecem das promessas, uma vez eleitos. É outra característica bem brasileira, à qual também fui me acostumando...
Brasileiro de verdade vive sempre à margem da sociedade. Come as sobras, se contenta com pouco. Afinal, o Reino dos Céus nos foi prometido pelos padres e não pertence a este mundo. Aprendi que é melhor deixar os ricos se tornarem mais ricos nesta vida, já que na “outra” terão muito o que aprender, se quiserem um passaporte para o Reino dos Céus. A justiça de Deus tarda, mas não falha, assegura o dito popular. É aconselhável não querer crescer nem conquistar nada na Terra. E, se cobiçarmos uma vida digna, com alguma fartura e adequada divisão da renda nacional, poderemos nos redimir desse pecado rezando quinhentas “Ave-Marias” e mil e tantas “Salve-Rainhas”.


Corrupção
Nada de se importar com os “Lalaus”, “Anões do Orçamento”, escândalos das ambulâncias, máfia do sangue, desvio de verbas públicas, superfaturamento de obras, malas de dinheiro, dólares na cueca. Tudo isso é coisa de quem vai para o inferno (?). Brasileiro tem é que se orgulhar de ser autossuficiente em petróleo, de bater recordes na produção de alimentos e não ter comida na mesa nem carro para dirigir; brasileiro tem é que se orgulhar de ter inventado o avião, e também o caos aéreo; tem que ficar feliz por seu país deter cerca de 12% das águas potáveis do mundo e não se envergonhar de poluir os mananciais, destruir as matas ciliares e ocupar o entorno das grandes represas e lagoas; brasileiro tem que assistir a chacinas como a da Candelária, ver mortos por balas perdidas todos os dias, assassinatos de jovens e adolescentes nas periferias das grandes cidades e achar tudo isso normal; brasileiro tem que achar que as mais de 50 mil mortes por ano no trânsito são aceitáveis e estão dentro da normalidade.
Afinal, nosso país é a terra do contraste. Temos campões de Fórmula 1, mas nosso trânsito anda a 12km/h nas metrópoles. Produzimos alimentos para exportar e o que sobra jogamos no lixo ou deixamos cair pelas estradas durante o transporte. Nada de economizar, temos muitas riquezas e podemos esbanjar... Temos prisões abarrotadas de condenados que cometeram pequenos crimes, enquanto os grandes ladrões de colarinho branco estão à solta, amparados pela lei. Vivemos em um país onde se explora sexualmente crianças e adolescentes, onde o tráfico de mulheres permanece impune, mas somos alegres, afinal, o Brasil é o país do eterno festival do pão e do circo, do trio elétrico e da cerveja. Mas, será que “toda brasileira é bunda?” Será que o nordestino é mesmo “antes de tudo um forte?”.  E que o baiano é mesmo preguiçoso?

Carnaval...
É um momento de descontração e oportunidade em que me “penitencio” do trabalho, do trânsito, da violência mostrada diariamente na TV, dos escândalos financeiros, das falcatruas que ocorrem em Brasília (e no resto do país), e de tantas outras calamidades que acontecem no meu querido Brasil. Graças a Deus que aqui não tem ciclone, terremoto, maremoto; não tem carro-bomba, terrorismo, guerra... Nossa guerra é outra: mais de 50 mil mortos no trânsito, balas perdidas, fome, falta de atendimento médico-hospitalar, desemprego, má distribuição de renda, falta de investimento em educação, transporte de péssima qualidade, povo sem memória. Mas nada que não tenha jeito... Afinal, temos tudo pra dar certo. Somos o país do samba e do futebol, somos um povo pacífico e ordeiro, trabalhador e paciente. Até quando?



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