Minha identidade de brasileiro
Reconheço-me como brasileiro, cidadão
consciente de meus direitos e deveres. Sou o brasileiro propalado pela grande
mídia, em alguns aspectos, e um cidadão do mundo, em alguns outros.
Como a maioria dos
compatriotas, nasci despido do que há de mais elementar na vida de um ser
humano: uma casa. Minha família não tinha habitação própria, um bem que só foi
conquistado 25 anos após o meu nascimento, 25 anos de luta.
Filho de pais analfabetos,
nordestinos, retirantes de suas cidades de origem. O mais velho de oito irmãos.
Morador, por óbvio, da periferia de uma cidade do interior Jequié (Bahia), em
cujo bairro “da Banca” não havia qualquer tipo de infraestrutura, esgotamento
sanitário, luz elétrica, água encanada, serviços de telefonia ou transporte
coletivo. “O fim do mundo”, onde todo brasileiro costuma nascer. Por estas e
outras questões é que eu me sinto um autêntico brasileiro.
Estudante de escola
pública, enfrentei a palmatória e os puxões de orelha para aprender a lição.
Repeti ano várias vezes, principalmente até a 5ª série. Durante o tempo de
escola, sempre precisei trabalhar. Peguei no batente aos seis anos de idade e
não parei mais. O difícil era conciliar o sono e o cansaço na hora de assistir
às aulas noturnas. Depois de uma jornada que se iniciava às 8 da manhã e
terminava às 22 horas, voltava a pé para casa, distante da escola quase uma
hora. Brasileiro aguenta. Sempre!
A volta para casa era
sempre um momento de desolação, pois sabia que, ao chegar, não encontraria o que
comer. Jesus tinha repartido um pão entre milhares de seguidores, mas em minha
casa a gente não conseguia repetir tal façanha. Não sabíamos fazer milagres. E
a casa, de vez em quando, mudava de endereço. Como não pagávamos o aluguel em
dia, ou ficávamos devendo, o dono nos botava pra fora. Uma rotina à qual nos acostumamos. Afinal,
tantos outros vizinhos passavam pela mesma situação, que essas privações se
tornaram familiares e comuns. Era o destino. Ninguém podia fazer nada para
mudar. Nem tentar mudar. Já era tradição no país o povo viver assim, ao Deus
dará. O melhor a fazer era se resignar enquanto “O Reino dos Céus” se preparava
para receber os pobres...
Trabalho? Trabalho de
brasileiro: carregador de compras na feira, limpador de quintais, vendedor de
doces nas esquinas, quebrador de pedras... Não tinha dinheiro para brinquedos
nem para livros. Brasileiro não lê, trabalha. Quando eu queria livros,
brinquedos, catava-os nos lixos. As sobras da renda mal distribuída estavam ali
ao meu alcance. Nas andanças pelas ruas e becos, aprendi sobre sexo, o que era
certo e o que era errado. Mas em casa as lições eram outras. Minha mãe, apesar
de analfabeta, tinha uma postura de brasileira honrada: honesta, não queria
“sujar” o nome, tinha que dar uma educação exemplar aos filhos, para não que
não viessem a sofrer como ela. Haveriam de ser diferentes!
Minha raça sempre foi a
“raça ruim”, a raça que pertence à pobreza, àquelas famílias que se situam
abaixo da linha da pobreza, a raça dos miseráveis, dos sem futuro. Eu não tinha
noção do que era ser negro ou ser branco. Eu sabia quem era preto e quem era
branco, mas não tinha a verdadeira noção da raça. Hoje descobri que sou negro.
Mas descobri também que pertenço à raça humana, o que dá tudo no mesmo, não
importa a cor da pele ou se os cabelos são lisos ou encarapinhados. Descobri
que a ‘tradução’ de raça mudou, mas que as condições de vida das pessoas,
brancas ou negras, continuam as mesmas, ou melhor, pioraram. Descobri que minha
mãe tinha uma avó índia, que havia muitos negros em nosso passado. Mas nada
disso me importa, não importa mesmo. Sou negro na raça!
Após mais de vinte anos de
luta incessante, de estudar à noite e trabalhar de dia, finalmente, saí das
estatísticas da miséria. Não preciso mais ser negro ou ser branco. Ascendi
socialmente, com esforço e com estudo. Apaguei da mente a promessa de
recompensa após a morte. Minha recompensa eu quero aqui, agora. Quero ser igual
a todos os outros brasileiros, como a lei me garante. Pena que tenha descoberto
tudo isso tarde demais.
Religião e cidadania
Nasci católico e continuo sendo católico.
Afinal, todo brasileiro é católico apostólico romano. Mesmo os que nunca vão à
igreja e nem sabem o que é ritual. Frequentei missas dominicais, batizados,
procissões etc. e tal. Mas a fome falou mais alto quando descobri que no Centro
Espírita eram distribuídas cestas básicas. Aí não saí mais de lá, desde os seis
anos de idade. Hoje, naturalmente, não recebo mais doações de cestas básicas,
nem de roupas, nem de remédios. Ao contrário, quando posso, doo alguma coisa.
“No meio do caminho tinha uma pedra”, e para driblá-la, me converti ao
protestantismo. Anos depois, voltei ao espiritismo. Recentemente, conheci o
candomblé e passei a frequentá-lo, sem, no entanto, deixar o espiritismo, nem o
catolicismo. Também não recuso, ainda, convites para assistir a cultos em
igrejas protestantes. Sou eclético, sou brasileiro.
A noção de cidadania
nasceu bem tarde em minha consciência e em minha família. Brasileiro não
precisa saber dessas coisas. Tudo é resolvido pelo governo. E o que o governo
não puder fazer, Deus dá um jeito! Minha mãe fazia promessa para tudo quanto
era santo. E todo ano rezava uma ladainha para São Roque, o que mais lhe
ajudava nas horas difíceis. Deus ficava em segundo plano. São Roque sempre
estava a postos. Deus, apesar de ser brasileiro, deveria estar sempre ocupado
com outros assuntos mais urgentes. Cuidando de um país tão grande, como iria
notar uma família de esfomeados no interior do nordeste?
As lutas estudantis, nos
idos anos 80, serviram para despertar uma noção de “igualdade” perante a lei. E
despertou também a revolta e a desilusão com os políticos, que sempre se
esquecem das promessas, uma vez eleitos. É outra característica bem brasileira,
à qual também fui me acostumando...
Brasileiro de verdade vive
sempre à margem da sociedade. Come as sobras, se contenta com pouco. Afinal, o
Reino dos Céus nos foi prometido pelos padres e não pertence a este mundo.
Aprendi que é melhor deixar os ricos se tornarem mais ricos nesta vida, já que
na “outra” terão muito o que aprender, se quiserem um passaporte para o Reino
dos Céus. A justiça de Deus tarda, mas não falha, assegura o dito popular. É
aconselhável não querer crescer nem conquistar nada na Terra. E, se cobiçarmos uma
vida digna, com alguma fartura e adequada divisão da renda nacional, poderemos
nos redimir desse pecado rezando quinhentas “Ave-Marias” e mil e tantas
“Salve-Rainhas”.
Corrupção
Nada de se importar com os “Lalaus”, “Anões
do Orçamento”, escândalos das ambulâncias, máfia do sangue, desvio de verbas
públicas, superfaturamento de obras, malas de dinheiro, dólares na cueca. Tudo
isso é coisa de quem vai para o inferno (?). Brasileiro tem é que se orgulhar
de ser autossuficiente em petróleo, de bater recordes na produção de alimentos
e não ter comida na mesa nem carro para dirigir; brasileiro tem é que se
orgulhar de ter inventado o avião, e também o caos aéreo; tem que ficar feliz
por seu país deter cerca de 12% das águas potáveis do mundo e não se envergonhar
de poluir os mananciais, destruir as matas ciliares e ocupar o entorno das
grandes represas e lagoas; brasileiro tem que assistir a chacinas como a da
Candelária, ver mortos por balas perdidas todos os dias, assassinatos de jovens
e adolescentes nas periferias das grandes cidades e achar tudo isso normal;
brasileiro tem que achar que as mais de 50 mil mortes por ano no trânsito são
aceitáveis e estão dentro da normalidade.
Afinal, nosso país é a
terra do contraste. Temos campões de Fórmula 1, mas nosso trânsito anda a
12km/h nas metrópoles. Produzimos alimentos para exportar e o que sobra jogamos
no lixo ou deixamos cair pelas estradas durante o transporte. Nada de
economizar, temos muitas riquezas e podemos esbanjar... Temos prisões
abarrotadas de condenados que cometeram pequenos crimes, enquanto os grandes
ladrões de colarinho branco estão à solta, amparados pela lei. Vivemos em um
país onde se explora sexualmente crianças e adolescentes, onde o tráfico de
mulheres permanece impune, mas somos alegres, afinal, o Brasil é o país do
eterno festival do pão e do circo, do trio elétrico e da cerveja. Mas, será que
“toda brasileira é bunda?” Será que o nordestino é mesmo “antes de tudo um
forte?”. E que o baiano é mesmo
preguiçoso?
Carnaval...
É um momento de descontração e oportunidade
em que me “penitencio” do trabalho, do trânsito, da violência mostrada
diariamente na TV, dos escândalos financeiros, das falcatruas que ocorrem em
Brasília (e no resto do país), e de tantas outras calamidades que acontecem no
meu querido Brasil. Graças a Deus que aqui não tem ciclone, terremoto,
maremoto; não tem carro-bomba, terrorismo, guerra... Nossa guerra é outra: mais
de 50 mil mortos no trânsito, balas perdidas, fome, falta de atendimento
médico-hospitalar, desemprego, má distribuição de renda, falta de investimento
em educação, transporte de péssima qualidade, povo sem memória. Mas nada que
não tenha jeito... Afinal, temos tudo pra dar certo. Somos o país do samba e do
futebol, somos um povo pacífico e ordeiro, trabalhador e paciente. Até quando?
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